Sorrir no inferno
Chamem-lhes domingos ou dias de doce fadiga.
Não é mais fácil esquecer a vida, mas é o que temos
de mais parecido com o descanso que a morte promete.
Visto-me tão mal quanto possa e vou
subindo a rua mais sinuosa, não há pressa. Observo
gatos a vadiarem por entre curtas sensações de paz,
passando à porta dos tugúrios onde me deixo
sentado a um canto enovelando uma série de pensamentos
- como discos riscados - a tocarem para estas espessas
horas de falência, bebidas e, a intervalos, mijadas
no urinol. Tenho o suficiente se me apetecer cair
sem peso, voar pelo chão, sorrir no inferno.
Mantenho um discurso de circunstância,
invento personagens fictícias que me ouvem atentamente
e vou quebrando o sigilo, amadurecendo teorias.
Deixo-me entusiasmar e crescer
planeando o contra-ataque, a revolução...
Mas assim que atinjo o ponto mais alto, os próprios
companheiros que me inventei vão virando os bolsos,
sacodem de leve as calças e levantando-se passam por mim,
deixam cair uma mão fria no meu ombro
e despedem-se abanando a cabeça.
Vejo-me de novo a sós, enfrentando um copo vazio
e uma folha de papel amassada. Uma vez mais
sinto inveja dos doidos a sério. Parece que eu só sonho
e acordo. E tudo o que sei é anotar as cinzas.
(Nervo, Averno, Lisboa, 2011, p. 117)
Sem comentários:
Enviar um comentário