quarta-feira, 31 de julho de 2013

Egito Gonçalves, na Sá da Costa, esta manhã

Poeta, editor e tradutor, Egito Gonçalves é hoje um nome pouco lembrado. E passaram apenas alguns anos depois da sua morte, em 2001. É uma pena e uma injustiça. Para o poeta e para os leitores, sobretudo os mais novos. A obra de EG é extensa e não resistiu, na totalidade, à prova do tempo; mas é muito estúpido não podermos ler, ou reler, muitos dos seus poemas, grande parte deles de elevada qualidade. Existe uma Antologia poética, que cobre quatro décadas da produção do autor (de 1950 a 1990), editada pela Afrontamento em 1991, mas talvez seja demasiadamente concisa e, além do mais, provavelmente está esgotada. Na verdade, quem queira conhecer a poesia de EG, sobretudo a mais antiga, e não seja frequentador habitual de alfarrabistas, dificilmente encontra os livros do autor de O mapa do tesouro. Por isso alguém deveria recolher e editar uma integral deste poeta. Mas isto, no fundo, é ter ilusões sobre a valorização da poesia por parte de um país que despreza há séculos os seus poetas. Para quê gastar saliva com isto. Adiante. 

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Hoje de manhã, numa surtida pouco comum à baixa lisboeta (viver nos subúrbios tem os seus custos), encontrei na Livraria Sá da Costa, enquanto alguns clientes e livreiros falavam do fecho iminente da mesma (mas também ouvi umas palavras sobre Herberto Helder...), encontrei, dizia, um livro de Egito Gonçalves, A viagem com o teu rosto. Obra de 1958, graficamente muito bonita, foi editada, imagine-se, por Publicações Europa-América e integrou a colecção do Cancioneiro Geral (é o volume 21 dessa célebre colecção). Sendo um livro manifestamente circunstancial (a sua segunda secção intitula-se precisamente "A circunstância, o dia..."), encontramos nele vários poemas de alta estirpe, entre os quais se destaca o conhecido "Notícias do bloqueio" (pp. 37-38) e outros, acompanhados de diversas dedicatórias a poetas contemporâneos, como Alexandre O'Neill, Cesariny, José Terra ou António Ramos Rosa, sinal das complexas linhas de encontro (ou de fuga) da poesia (neo-realista, surrealista, não-alinhada) e dos poetas daquele tempo. Sendo um texto de mais fácil acesso, em vez do mencionado "Notícias do bloqueio", prefiro reproduzir aqui dois poemas muito menos acessíveis e que não surgem na Antologia poética de 91, da Afrontamento. Dois poemas que considero excelentes e muito actuais.
 
 
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"Notícia para colar na parede"
 
 
Por aqui andamos a morder as palavras
dia  a  dia   no tédio dos cafés
por aqui andaremos    até quando
a fabricar tempestades particulares
a escrever poemas com as unhas à mostra
e uma faca de gelo nas espáduas
por aqui continuamos   ácidos   cortantes
a rugir cotidianamente até ao limite da respiração
enquanto os corações se vão enchendo de areia
lentamente
lentamente
 
(p. 53)
 
***
 
"Inventário"
 
Para António Ramos Rosa e José Terra
 
 
O cidadão pacífico toma café e roi as unhas
enquanto os dias passam - o Sol, os cometas,
as searas, os Deuses, os fabricantes de calendários...
 
Depois dos cafés o cidadão possui ainda oito cinemas
e os namorados podem concorrer aos jardins miniatura
onde além da clássica relva e as 24 árvores
há ainda dois urinois e três velhos próximos da noite.
 
Dos quinze em diante oferece-se uma mulher em decúbito dorsal
que alguns não aproveitam.
 
Depois morre-se e colocam-nos em cima
algumas plantas consideradas tristes.
 
 
(p. 47).
 
 


1 comentário:

  1. Admiro muito a poesia de Egito Gonçalves, tenho os seus livros na estante sempre à mão. Como tradutor é um pioneiro, frequentando paragens pouco habituais. Como editor, a sua Limiar dava espaço aos novos e publicou autores como Fiama, Luís Miguel Nava, Gastão Cruz, Inês Lourenço, João Luís Barreto Guimarães, muito mais. Como pessoa, que pude brevemente conhecer, teve toda a paciência para estar a falar sobre poesia com jovens alunos, num belo jardim de Gaia, numa noite de verão que foi generosamente prolongando, para fascínio de todos os que com ele dialogavam.

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