A Joaquim Manuel Magalhães
Não há ninguém para ouvir, se acaso cantam
a chuva, pássaros, ausências vibrantes
na cozinha de outrora,
- no telhado onde a noite repousa de seus astros,
nas ramagens transidas mais que por raízes
sôfregas dos passos enterrados:
pelo vazio talhado por quantos se apagaram
sem poder acenar-lhes sequer o olhar restante.
Do fumo, nem névoa nem olor,
(aquele extenso olor de lembranças e pinho)
só a sua escrita viva nas lajes, nas madeiras:
aqui, diz a caruma a espertar o café;
ali, que ateiam lenha mãos tão anafosas
que sob a terra inda me acalentam;
e leio mais além as ceias, os serões
de sabores e conversas fluindo sonolentos.
Há a porta fechada por uma chave perra
sem haver quem recorde onde ela está guardada;
e a lareira e a mesa, já não pedra e castanho:
rostos sob a poeira sem lábios para a voz;
e o cântaro, a soleira, as janelas, o cesto,
sem água nem pegadas, sem cortinas e pão.
Longínquo, desconheço o que aí sobrevive:
houve palavras, gestos, achas nem cinza hoje,
calor e não apenas de sol e labaredas,
em redor soltou-se a aura de pólen e trinados;
isto me chama e abriga como as paredes trémulas,
mais de vestigíos plenos que de cal e adobes,
onde busco quem fui sem me importar se o encontro,
entre rastos de sombras e de asas já sem voo.
(Sítios, Assírio & Alvim, Lisboa, 2011, pp. 24-25).
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