Esta criança esquálida,
de riso obsceno e olhares alucinados,
nunca apertou nas mãos a fria face pálida,
nunca sentiu, na escada, as botas dos soldados,
nunca enxugou as lágrimas que aniquilam e esgotam,
nunca empalideceu com o metralhar de um tanque,
nem rastejou num sótão,
nem se chama Anne Frank.
Nunca escreveu um díário nem nunca foi à escola,
nem despertou o amor de editores piedosos.
Nunca estendeu as mãos em transes dolorosos
a não ser nos primores da técnica da esmola.
Batem-lhe, pisam-na, insultam-na, sem que ninguém se importe.
E ela, raivosa e pálida,
morde, estrebucha, cospe, odeia atá à morte.
Pobre criança esquálida!
Até no sofrimento é preciso ter sorte.
(Reproduzido em Poemas Portugueses - Antologia da Poesia Portuguesa do Séc. XIII ao Séc. XXI; selecção, organização, introdução e notas de Jorge Reis-Sá e Rui Lage; prefácio de Vasco Graça Moura, Porto Editora, Porto, 2009, pp. 1288/1289).
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